da série-pesquisa à curva.art.br

distinguir a série-pesquisa Curva das ações do Projeto CURVA1 do qual o podcast (um arquivo sobre performance, 2020) e a plataforma (curva.art.br, 2022) são realizações em colaboração com outres agentes culturais, me pareceu uma maneira honesta de iniciar nosso diálogo. de certa forma, passados 5 (cinco) anos de investigação prático-teórica e pouco mais de 2 (dois) de manutenção de acervo oral, a curva.art.br é uma das maneiras que encontrei de abrir um pouco mais a investigação (em fase de amadurecimento) e reafirmá-la como espaço de produção coletiva de conhecimentos acerca da performance.  

retornando a distinção… em algumas pistas por escrito, tenho mencionado o início da série-pesquisa por vezes em 2017, por vezes em 2019. talvez, porque o interesse por investigar a performance enquanto linguagem, técnica e disciplina tenha acontecido nesse intervalo de tempo. de modo sucinto, a série-pesquisa Curva acontece de modo metalinguístico à medida que me utilizo do espaço-tempo da performance para tratar dela mesma. nas ações (performances) que compõem esta série-pesquisa, me utilizo das experiências deste corpo que performa, envolvido em curadorias e que também media ações formativas, e que escreve.  

o Projeto CURVA (ou, o devir-curva?), por sua vez, situa-se no impulso por compreender a performance – junto a outros corpos que a praticam – enquanto arranjo de saberes oriundos de diversos campos de conhecimento, em um esforço por aproximar artes visuais, teatro, dança, literatura, música, dentre outras linguagens, bem como processos ritualísticos e ativismos. esta não é uma atitude pioneira e há inúmeras investigações e projetos nesse sentido, idealizados e realizados por outres agentes latino-americanos, algumas destas cartografadas através do acervo oral de entrevistas do Projeto CURVA.  

não existe, até este momento, o interesse por conceituar performance, senão investigá-la e aproximá-la de quem tenha o interesse por esta “linguagem artística”, “técnica”, “modo de estar no mundo”, “disciplina”. convocando, aqui, as palavras de algumas pessoas entrevistadas pelo acervo do Projeto.

à série-pesquisa interessa perceber, por exemplo, como a performance e este corpo que performa se relaciona com o Sistema de Arte; interessa ao Projeto CURVA, por exemplo, os encontros entre artistes e o que decorre a partir desses encontros entre corpos que performam. reflexões sobre esses interesses e ações outras para a trajetória do Projeto aparecem quando os encontros com as pessoas entrevistadas acontecem. 

dentro das ações da CURVA, uma em desenvolvimento, é a biblioteca física, da qual fazem parte alguns títulos especializados em performance. esta reunião física da literatura contemporânea no campo da performance acontece por doações espontâneas de autoras e autores, bem como pela aquisição de livros – possível a partir de ações remuneradas que realizo. hoje, o Projeto CURVA possui três frentes de atuação: a biblioteca física, as entrevistas e a plataforma. em um esforço de repetição de ações e de discurso, que comento de modo breve, mais a frente. 

peço desculpas a você, que lê, pela quebra aparente entre os assuntos que trago neste texto – em pulsão. mas, gostaria de compartilhar algo que faz parte da bibliografia e assemelha-se às motivações do Projeto. em seu livro Grupo Totem: A Infecção Pela Performance e a Encenação Performática, Fred Nascimento:

Até hoje o espaço para a arte de ruptura nos espaços oficiais é restrito, mas certamente as dificuldades são mais amenas que aquelas encontradas pelos pioneiros. Ainda nos anos 1980 registramos a realização de performances em diferentes espaços como a Moderna Centro Cultural, com a Com(c) (s) (?)erto Performance, de Paulo Brusky e Daniel Santiago, o Espaço Pasárgada, da FUNDARPE, com a Performance Linguística, de Paulo Brusky. Em 1987 a Galeria Metropolitana – hoje Museu de Arte Moderna – realiza o Pernambuformance – o 1º Ciclo de Performance do Nordeste – coordenado por Paulo Brusky, evento que contou em sua maioria com performers da área de artes visuais e músicos. Entre os muitos participantes estavam Daniel Santiago, Pierre Novelino, Alex Mont’Albert e Ricardo Luiz Moreira. (NASCIMENTO, Fred. p-40). 

este trecho do livro de Fred Nascimento, extraído do primeiro capítulo de seu livro, me inspira a escrever sobre a geração de artistes da qual faço parte, a exemplo do que fez Fred. há outros livros nesse sentido, contudo, inicio com o livro de Fred pela relevância do trabalho do Grupo Totem para as histórias das artes em Pernambuco, sobretudo para as histórias da performance.  

agora, gostaria de partilhar parte da “resposta” à pergunta que me foi feita, em 2020, por Júlia Antivilo Peña (artista feminista e pesquisadora chilena), no âmbito do Seminário Taller Desobediencia Creativa. Arte feminista latinoamericano2, mediado por Julia e que contou com a participação de mulheres cis e pessoas trans não-binárias de diferentes territórios da América Latina. 

com a sua prática artística, “a quem, a quê, como você desobedece?”. 

Curva é uma série de trabalhos que iniciei em 2019, durante o Terra Estranha – circuito de performances, evento que ocupou a Galeria Janete Costa, em Recife, Pernambuco, Brasil, com três finais de semana dedicados à fruição de performance arte. O Terra Estranha aconteceu de forma independente e foi realizado por Clóvis Teodorico (artista visual e idealizador do evento) e com a minha colaboração enquanto performer e produtora cultural. Curva se propõe a refletir a performance, abordando desde as práticas artísticas, e como se comportam a curadoria e o mercado de arte em relação (ou não) com a performance. A série é composta por 1 colagem manual e duas performances (CURVA – ação nº. 1 e CURVA – ação nº. 2). A ação nº. 2 é uma partilha do meu processo criativo em performance e de reflexões que passo a ter quando me percebo dentro/fora do circuito local de artes visuais. A colagem analógica é transformada em lambe-lambe e adesivos que carreguei comigo, em 2017-2018. Se a ação de colar lambes sob um pseudônimo (e, por vezes, sem assinatura) é uma ação direta, as duas ações performáticas funcionam como negociações entre este corpo que performa e as instituições/profissionais que fazem parte destas instituições. A Curva podcast será um desdobramento dessa série de trabalhos e, por isso, receberá o mesmo nome. A idéia de produzir arquivos de áudio surgiu durante minha participação no Seminário-Taller, quando tomo consciência da importância da produção de arquivo em performance, seja pela escassez de programas de rádio ou similares que tratassem especificamente desse tema, seja pela importância da presença de vozes como a de artistes de minha geração nos meios de comunicação. Desejo, com este projeto, arquivar um momento histórico pelo olhar de uma performer em articulação com outrxs profissionais atuantes nesta e a partir desta linguagem, projetando suas vozes junto à minha… não como quem dispersa cartas ao vento, talvez dedicando-as a leitores, quem sabe em 2030.

a ideia da plataforma como um lugar de reunião e sistematização, através do acervo oral de entrevistas e da produção textual é, sobretudo, um exercício de produção de arquivo e de “lubrificação” (utilizando palavra de Mónica Mayer, pois, que me recordo da sua colaboração com o Projeto CURVA, em entrevista para a 2ª Temporada do podcast). Em algumas das suas falas públicas, Mónica pontua sobre a importância de produzir fontes sobre nossa trajetória artística e sobre nosso trabalho, em um exercício de repetição das informações, no que me parece uma prática incansável de produção de fontes por parte da artista. 

“Repetir, repetir, repetir…” 

nesse sentido, me agrada aproximar o Projeto CURVA de ações como a de Fred Nascimento e de Mónica Mayer, que são performers e escritores, para compreender a CURVA enquanto espaço de produção de fontes, no qual a pessoa entrevistada produz informações fonte sobre a sua trajetória nas artes e sobre seus trabalhos e processos criativos, mirando autonomia. isso, porque penso que o meu trabalho, no âmbito do Projeto, consiste mais em mediar o espaço da oralidade e da escuta, pensando na investigação – pano de fundo do Projeto –  e pensando nas pessoas entrevistadas e nas pessoas ouvintes – considerando aqui, principalmente, ouvintes que não estão familiarizades com a linguagem da performance. 

há também um desejo por aproximar pessoas que afirmam não conhecer bem a performance desta linguagem. o que é performance? – esta pergunta que me remete à preocupação com a “formação” de público, digamos; e a ferramenta podcast me pareceu uma maneira acessível de iniciar essa aproximação que menciono, pelas maneiras que se pode distribuir um arquivo de áudio, de alguns anos pra cá.   

são objetivos, pois, do Projeto: articular diálogos com/entre profissionais que atuam no campo da performance arte, essencialmente performers, pesquisadorxs e curadorxs; provocar tensionamentos, discussões e reflexões a partir da publicação desses diálogos;  promover um espaço de partilha de saberes através da oralidade. penso que todes que escutam aprendem com o que decidem partilhar cada artiste entrevistade a partir das “perguntas” mote, e me incluo nesse processo de aprendizagem. 

o Projeto inicia com a intenção de arquivar, não sendo ingênuo a ponto de supor que pode dar conta da totalidade de artistes que performam em um dado território, em um dado tempo. a preocupação situa-se, por exemplo, na profundidade das entrevistas. 

as três primeiras temporadas de entrevistas foram a partir de pesquisas curatoriais iniciadas já no âmbito do Seminário-Taller, mediado por Júlia, que orientou o Projeto, assim como os projetos das outras pessoas participantes da formação. a 4ª e a 5ª temporadas (em pré-produção, ao tempo de escrita desse texto), é resultado da pesquisa curatorial conjunta com Abiniel João Nascimento (artiste visual, colaboradore do Projeto CURVA, desde o início) e as próximas temporadas receberão a colaboração de outres agentes culturais que pensam a performance na contemporaneidade, assim como nós. 

o acervo oral investe no método da fala e da escuta enquanto atos políticos, educativos e estéticos muito potentes quando pensamos em produção de conhecimento e de pensamento crítico. nesse sentido, o Projeto CURVA faz referência também o Podcast VERSAR – práticas artísticas, maternidades e feminismos3, de autoria de Priscilla Costa Oliveira (artista, pesquisadora e mãe), da qual sou educanda em suas formações acerca de podcast

o que se deseja, a partir das ações da CURVA é colaborar, em alguma medida e consciente das limitações do projeto, com a linguagem da performance, tornando conteúdos acessíveis, de modo gratuito e que sejam produzidos colaborativamente. 

o Projeto é iniciado em um momento político no qual a articulação entre agentes da cadeia produtiva da arte e cultura se fez ainda mais necessário; e os assuntos abordados nas entrevistas vão desde trajetórias (como e quando seu corpo se conecta com a performance arte?), passando por práticas artísticas, articulações/eventos/ações/projetos. a cada temporada, é possível perceber a influência das pessoas entrevistadas na formulação das perguntas e também nas maneiras de apresentar os arquivos.  

há uma pergunta recorrente, em todas as entrevistas: qual a importância do erro em seu processo criativo? ou qual a importância do que se entende por erro em seu processo criativo? ou, mais recentemente, qual o lugar do “erro” em seu processo criativo?4 de modo que a repetição desse questionamento aponta um interesse de investigação que, neste momento, diz mais do percurso de um trabalho…  

acredito que o Projeto CURVA seja um projeto auto investigativo no qual se busca a reciprocidade entre as pessoas que com ele colaboram, a fim de que seja possível manter um espaço onde os conhecimentos sobre a prática da performance sejam reconhecidos em sua variedade e, por este motivo, tratados a partir de diferentes óticas. 

obrigada pela leitura, nos encontramos no próximo arquivo. 

Recife-PE, novembro/dezembro de 2022. 

  • Foto de Capa: AÇÃO nº.2 (série-pesquisa Curva). reperformance. 2º Salão de Beleza, Mamam (Recife, 2022). Fotografia: Caio Silva.
  1. Letícia Barbosa, performer, pesquisadora, arte-educadora e curadora independente; https://anchor.fm/curvapodcast; A realização da curva.art.br só foi possível em razão do incentivo da Prefeitura da Cidade do Recife, através do Sistema de Incentivo a Cultura (SIC). Foi proponente e produtor, o multiartista Thiago Das Mercês. A criação e desenvolvimento do site é por Diogo Andrade.
  2. O Seminário-Taller foi oferecido gratuitamente através da Cátedra Rosário Castellanos de Arte y Género, da UNAM (México).
  3. https://www.podcastversar.com/sobre
  4. Ouvir e/ou assistir a Tradução em Libras da entrevista com a artista brasileira Meujaela Gonzaga.

Referências: 

REYES, Cátedra Alfonso. Jornadas de Feminismos 2021. MÓNICA MAYER. Arte y feminismo. YouTube, mar de 2021. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=gxv-L0FlLH4. Acesso em: dez de 2022.

NASCIMENTO, Fred. Grupo Totem: A Infecção Pela Performance e a Encenação Performática; apresentação [de] Rudimar Constâncio e Ailma Andrade; prefácio [de] Naira Ciotti, – Recife: Sesc Pernambuco, 2019.  

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